Atualização: após a publicação deste texto, a CVM divulgou a ata da reunião em que o colegiado definiu suspender a negociação do FII. Para acessar o documento, clique aqui.
SÃO PAULO – Na última quarta-feira (18), a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) anunciou a suspensão do Mérito Desenvolvimento Imobiliário I Fundo de Investimento Imobiliário (MFII11), administrado pela Planner Corretora de Valores S.A. Os motivos, listados em comunicado, são vagos: passam por atuação de forma irregular “incluindo o fato de que a sua atuação se assemelha a de uma pirâmide financeira com indícios de fraude”.
Por mais importante que seja a CVM ter tomado providências contra estas irregularidades, o formato da divulgação da decisão pode prejudicar cotistas e trabalhadores, de acordo com o especialista em fundos imobiliários (FIIs) e professor do InfoMoney Educação Arthur Vieira de Moraes. "A atitude da Autarquia se assemelha a deixar 8 mil pessoas trancadas em uma sala com um possível canibal", critica.
Ele explica a analogia: a negociação das cotas em bolsa está suspensa, mas o fundo segue existindo, administrando mais de 20 ativos, e os cotistas (mais de 8 mil pessoas, de acordo com a própria Mérito) estão de mãos atadas: não podem negociar suas cotas e, ainda mais grave, não têm informação detalhada sobre o tipo de irregularidade cometida pela administradora. As definições sobre futuras providências serão tomadas apenas depois que a Mérito e a Planner prestarem esclarecimentos sobre as irregularidades apontadas, diz a Autarquia (“caso as irregularidades apontadas sejam sanadas, a SIN deverá submeter o caso ao Colegiado para nova apreciação, o qual poderá determinar a revogação da suspensão [das negociações]”).
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“Ao suspender a negociação e deixar futuras decisões a cargo de uma futura apreciação da questão, a CVM chegou em uma sala cheia de gente e disse: ‘há fortes indícios de que aquele cara seja um canibal. Vou trancar a sala com todos vocês aí dentro, e, se ele provar que não é um canibal, eu abro a porta de novo”, disse Arthur.
Atuação “esquisita”
Mesmo antes de apontadas irregularidades na distribuição de rendimento, na avaliação de ativos, no valor da taxa de ingresso e na própria gestão da carteira, o FII em questão já atuava de maneira “estranha”, espelhando uma espécie de pirâmide financeira – também citada no documento da suspensão. A suspeita de que isso estava acontecendo era antiga, por um motivo que está no nome do fundo: Desenvolvimento.
O FII em questão distribuía renda a seus cotistas desde seu início, regularmente, “como um relógio”. Mas como?
“Este é um fundo de desenvolvimento. Ele compra imóveis em fase de construção ou começa do zero a construir”, aponta Arthur. Normalmente, FIIs que distribuem rendimentos mensais com regularidade o fazem a partir de rendimentos (aluguéis, principalmente) dos imóveis pertencentes a eles. No caso de empreendimentos ainda em construção, a distribuição de renda mensal simplesmente não faz sentido: nesta fase, imóveis geram despesa, não receita. Justamente por isso, fundos de desenvolvimento tendem a apresentar uma dinâmica diferente: ao entregar um ativo, o fundo recebe uma bolada, normalmente distribuída de uma só vez aos cotistas – são vários meses sem geração de receita para cada mês no positivo.
Em entrevista de 12 de abril deste ano, Alexandre Despontin, gestor do fundo, admitiu: o valor cobrado de cotistas como taxa de ingresso era distribuído a investidores anteriores como rendimento mensal. Basicamente, para continuar distribuindo renda, o FII necessitava de cada vez mais cotistas, gerando aportes maiores, capazes de pagar uma conta crescente. Para isto, o fundo realizou duas ofertas públicas e estava prestes a realizar uma terceira, que cobraria R$ 20 como taxa de ingresso. É justamente essa dinâmica que alimenta uma estrutura de pirâmide.
Mais de um ano antes da entrevista em questão, Despontin participara de uma edição do programa Fundos Imobiliários, da InfoMoneyTV. Naquele momento, dizia, contraditoriamente, que a renda mensal tinha outra fonte: imóveis vendidos cujos rendimentos eram distribuídos aos poucos, não de uma só vez. Questionado sobre a probabilidade de esta distribuição de renda acabar abruptamente, o gestor confirmou: sim, o cotista poderia perder a renda repentinamente. Só as duas respostas antagônicas já seriam motivo para desconfiança. O trecho da entrevista está disponível no vídeo acima.
“Tem cara de pirâmide? Sim. Está errado? A CVM proíbe isso?”, questiona Arthur, que emenda: “não é muito diferente da renda mínima garantida, a diferença é que esses fundos arrecadam na primeira emissão de cotas”, opina. “Não é bacana, mas ilegal também não era”.
A renda mínima garantida é um artifício utilizado por gestores de FIIs para atrair cotistas. Eles oferecem rendimentos mensais mínimos mesmo antes de os imóveis começarem a gerar lucro per se. Este dinheiro não é oferecido pelo fundo, mas por um terceiro – normalmente, construtora ou administradora do imóvel – e é possibilitado pela quantia paga na compra da cota, algo que, obrigatoriamente, deve ficar claro ao investidor todo o tempo. Ou seja, também neste caso, é o próprio investidor que paga por esta renda.
Os outros problemas
O investidor atento, portanto, já poderia estar ciente da semelhança deste FII com um esquema de pirâmide. Isto está esclarecido. Outros aspectos da deliberação emitida pela CVM, porém, permanecem perigosamente misteriosos.
A primeira consideração do comunicado emitido nesta semana é que a CVM “constatou” que “os rendimentos distribuídos pelo Fundo, aparentemente, não refletem o resultado financeiro advindo da gestão de sua carteira”. Este é um fundo que não investe diretamente em imóveis, mas em empresas detentoras destes imóveis. O balanço destas SAs não é aberto, logo, não é possível saber quais são os resultados financeiros citados no texto.
Somando a isto, o segundo item diz que “há indícios de irregularidades da avaliação dos ativos e contabilização de receitas”. Sabe-se que alguns ativos do Mérito têm laudos de avaliação assinados pela Coliers, mas não foram divulgadas mais informações a este respeito até agora.
Já o último item da deliberação discorre que “há indícios de gestão fraudulenta da carteira do fundo, inclusive com a realização de investimentos em desconformidade com o disposto no art. 45, da Instrução CVM 472/2008”. Esta instrução diz respeito à “constituição, a administração, o funcionamento, a oferta pública de distribuição de cotas e a divulgação de informações dos Fundos de Investimento Imobiliário”. Novamente, o comunicado deixa em aberto quais destes aspectos são feridos pelo objeto.
Desnecessário ser especialista para entender que todas as inconformidades listadas parecem graves. Ao mesmo tempo, não há nada no comunicado que identifique exatamente quais foram as supostas irregularidades cometidas pela gestão e pela administração do fundo, o que deixa os cotistas e demais interessados totalmente no escuro.
Para Arthur, a postura da CVM deveria ser mais assertiva neste ponto. “Eles teriam que dar mais detalhes sobre as irregularidades que estão apontando. Depois dizer como quer que sejam sanadas [pelas responsáveis] e em que prazo. Caso não sejam sanadas [as irregularidades] o que [a Autarquia] vai fazer. Ela vai liquidar o fundo nesse caso? Precisava dizer”, argumenta o professor.
A desinformação pode, inclusive, assustar cotistas de fundos completamente idôneos e prejudicar todo um mercado. Por outro lado, é um lembrete trágico para uma máxima que jamais deve ser esquecida: antes de investir, saiba absolutamente tudo sobre os atores envolvidos no ativo.
Trabalhadores na vida real
Igualmente importante, vale lembrar que a natureza dos fundos imobiliários é gerar renda no mercado financeiro a partir de imóveis, ou seja, ativos da economia real. Quando um FII de tijolo tem sua existência ameaçada, é necessário lembrar do(s) imóvel(is) que estão por trás dele.
Neste caso, são mais de 20 imóveis em fase de construção. Isso significa, além das obras em si, o trabalho de incontáveis empreiteiros, engenheiros, fornecedores, entre outros. Justamente por isto, comenta Arthur, faz sentido manter a operação do fundo enquanto a investigação não está completa.
E os cotistas?
Por outro lado, caso seja realizada a liquidação do fundo, será preciso buscar uma nova gestora e uma nova administradora para garantir a manutenção destas obras – e, em última instância, a proteção dos cotistas. Estas 8 mil pessoas não sabem, por exemplo, se os rendimentos mensais serão mantidos. Ou ainda se este rendimento segue isentos de Imposto de Renda - conforme é garantido para FIIs listados em bolsa com 50 ou mais cotistas.
Segundo a Suno Research, que publicou um artigo sobre o tema, é provável que o rendimento mensal aos cotistas seja preservado no curto prazo. "Porém, ao longo do semestre, é possível que tenhamos algum impacto impossível mensurar neste momento, dado que as receitas de taxas de ingresso não existirão neste período inicial", lembra o texto, assinado pelo professor Marcos Baroni.
Outro lado
Contatadas, a Mérito e a Planner afirmaram, na quinta-feira (19), ainda não ter sido formalmente comunicada pela CVM e "ressalvam que todo e qualquer esclarecimento solicitado pela Autarquia foi devidamente atendido".
"Reiteramos que a Planner e a Mérito Investimentos não possuem conhecimento das supostas irregularidades mencionadas na Deliberação nº 795. O Fundo sempre atuou de forma regular, conforme a legislação, regulamentação, normas de autorregulação e o seu regulamento", disseram as empresas em comunicado.
Atualização:
No fim da tarde desta sexta-feira (20), a CVM publicou a ata completa do Colegiado da CVM a respeito do assunto, acessível neste link. Nela, há uma longa explicação sobre os malefícios do formato de distribuição de rendimentos do fundo Mérito Desenvolvimento, bem como um detalhamento dos documentos solicitados a fim de investigar a atuação da gestora e da administradora.
Além do já explanado esquema de pirâmide, uma investigação realizada por um investidor reclamante descobriu que parte da distribuição dos rendimentos do FII se pauta em "significativos ganhos ainda não realizados decorrentes de avaliação ao valor justo de investimentos do fundo".
A irregularidade de gestão explanada é que o gestor, Alexandre Despontin, "faz a gestão dos empreendimentos imobiliários do Fundo, tendo, inclusive, assinado a maior parte dos contratos, parcerias e escrituras de compra e venda dos imóveis adquiridos, como procurador da Planner". Isto é o que a Autarquia considera "gestão irregular dos ativos imobiliários do Fundo", dado que "não há como o Administrador delegar para um terceiro, ainda que gestor registrado na CVM, as atividades de gestão dos ativos imobiliários do Fundo".
Outro dado importante está no resultado do fundo, que sempre ficou negativo. Sem computar a taxa de ingresso, entre a criação e a data presente o fundo teve resultado negativo em R$ - 19,9 mil. Com o acréscimo da taxa, o valor segue negativo, em R$ - 4,6 mil.
O valor pago a título de dividendos pelo fundo é "oriundo de contratos firmados com sociedades em conta de participação (“SCP”), que representam, na prática, juros de operações de empréstimo aos parceiros, incorporadores e construtores, que desenvolvem empreendimentos específicos". Essa prática não é permitida pela instrução 45 da CVM.
Quanto ao fluxo de caixa, o documento cita "uma importante discrepância na planilha". Uma das sociedades em conta de participação (“SCP”) teve valor atribuído de R$ 2.307,3 mil. "Entretanto, nas DF auditadas do mesmo exercício, o valor atribuído à SCP em 31.12.2015 é de R$ 3.898,1 mil; o que significa uma diferença de R$ 1.590,8 mil, equivalente a 56% do lucro líquido apurado no exercício findo em 31.12.2015, que foi de R$ 2.850,7 mil".
Constatou-se, ainda, que em 2017 o fundo se beneficiou da divulgação de ganhos "com avaliação ao valor justo de imóveis adquiridos há poucos dias ou meses do encerramento do exercício".